quinta-feira, 22 de março de 2012

Caminho sem volta

Lá estou eu, na praia de Santos, com meus amigos e familiares, diversão pura, banho de mar, vôlei de areia... Um estrondo... Não estou mais na praia... Cadê todo mundo?... Eu não sabia onde estava.

Depois de alguns minutos de total desorientamento me lembrei. Como é que eu tinha esquecido? Era tudo um sonho, pois eu estava num avião que acabara de aterrissar nos EUA. Sozinho num dos maiores e mais ricos países do mundo.

Solidão... o que é solidão? Nós estamos acostumados de ter sempre alguém no lado, mas você pode dizer: eu passei o fim de semana sozinho. E dai, isso não é solidão. Solidão não é ficar em casa, um lugar onde passamos grande parte de nossas vidas, onde dormimos, onde moramos, podendo chamar qualquer amigo para nos fazer companhia. Solidão é estar num lugar onde nunca esteve antes, com pessoas que nunca havia visto antes, com uma língua diferente da que usamos diariamente. Esta era a minha situação.

No dormitório...

Contando com muita sorte e a ajuda de um estranho, chego no meu novo lar, o lugar que substituirá a minha casa, não no meu coração, mas fisicamente falando. No quarto tudo é em dobro, cama, armário, prateleiras, criado-mudo, até as janelas eram duas, parecia a imagem de um espelho.

Mais uma vez eu estava sozinho, mas desta vez a solidão parecia aumentar. As camas, os armários, as prateleiras, “ninguém” estava sozinho, só eu, eu era o único que não tinha um igual para me fazer companhia, a não ser a AIDS.

Momento crítico, é desta forma que eu definiria este assunto. Não suportaria conversar com outros jovens sobre AIDS, como posso dar a minha opinião sobre uma doença que vai tirar a minha vida...

Minha vida... eu não entendo isso. Como a vida pode ser minha se eu não posso escolher quando ela acaba. “meu” é tudo que me pertence, a vida me pertence... não! Mentira! Esta vida de que tanto falamos não nos pertence, mas sim aos bandidos que saem atirando para todos os lados, aos motoristas bêbados que avançam sinais e sobem para a calçada ou batem no seu carro, ao acaso, ao destino, e no meu caso a AIDS.

Será que é este o meu destino? Ter que viver, ou fazer de conta que estou vivendo, quando na verdade estou adiando a morte. Da janela do quarto, depois do jardim e da rua, há um abismo, um profundo e largo abismo. Ficar olhando para ele e imaginar a minha vida, ou melhor, a vida da AIDS. Tente imaginar, você andando reto, sem poder parar, tendo em seu caminho a rua, que representa todos os perigos diários que enfrentamos. Mesmo sobrevivendo a eles você ainda não se salvou, tem o abismo. Você não pode atravessá-lo, nem contorná-lo, só pode seguir em frente, ele cada vez mais perto, mais perto, mais perto...

Esta é a vida que me foi reservada, e eu só tenho duas opções: ou eu caminho o mais devagar possível, passando um tempo enorme no meio da rua, adiando a morte, ou eu saio correndo e me atiro de uma vez, acabando com o sofrimento de uma imitação de vida, acelerar o destino, sofrer o menos possível.

O que você faria? Muitas vezes pensei em sair correndo e me atirar, mas por um motivo misterioso, que eu não sei explicar, não o fiz. Talvez seja simplesmente que eu goste da vida, goste de viver, por mais que eu sofra, nunca desistirei da vida, da minha vida, não a entregarei assim tão fácil.

Numa noite tive um sonho, que se repetiu várias vezes durante o tempo que fiquei nos EUA, eu sonhei que tinha uma vida normal. Normal, uma palavra tão... normal. Era exatamente isso que eu queria uma vida normal, mas o que é uma vida normal? Ou melhor, por que a minha vida não é uma vida normal?

Esta é uma pergunta que me atormenta, por que eu não tenho uma vida normal? Por que eu não sou normal? Por causa da AIDS... a AIDS que se f..., eu só quero viver sem ter que me preocupar com quando é que eu vou morrer, eu não quero morrer.

Normal, ninguém quer morrer. O resultado do GRE-NAL foi normal. O teu exame está normal. O que faz algo ser ou não ser normal? Talvez a resposta para as minhas dúvidas seja uma palavra pequena, pequena mas grande, como o Romário, ele é pequeno, baixo, mas é um grande jogador. A resposta é simplesmente EU.

Talvez, o que faça com que a minha vida não seja normal seja eu mesmo, eu que a deixei assim, anormal. Não é necessário que a minha vida seja anormal, basta eu saber que ela tem um asterisco ao lado. Posso fazer tudo, até transar, desde que seja de camisinha e minha parceira saiba do asterisco da minha vida, só que terei que tomar cuidados especiais, não anormais, especiais.

Sei que é difícil viver assim, com certeza sofrerei muita discriminação, mas mesmo assim não desistirei de viver. Não desistirei de ter uma vida normal. Não desistirei de combater esta mal que esta dentro de mim, pois a cura pode ser descoberta me salvando do abismo e me libertando para eu mudar de rumo. Não quero e não vou morrer tão cedo. Eu quero viver.

por Renan Pereira Gerber, 2003

Texto inspirado no livro Depois Daquela Viagem de Valéria Piassa Polizzi.